sexta-feira, 30 de maio de 2014

A TEOLOGIA DO CAPITAL


De que forma a nação mais alegadamente evangélica do planeta (e, portanto, oficialmente a mais fiel ao espírito do Novo Testamento) acabou se tornando dentre todas a mais brutalmente consumista, mercantilista e materialista (e, portanto, a menos fiel ao espírito do evangelho e do Novo Testamento)?

Segundo Max Weber, em seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904), a resposta à pergunta está, paradoxalmente, na teologia da própria Reforma. Tudo no nosso competitivo mundo capitalista, de telefones celulares a Big Brother, de Intel a sequilhos Daltony – passando por Tele-Sena, orkut, Danone Activia, Mae West, Pastilhas Valda, Pasta Jóia e Amado Batista – seria o inusitado resultado de uma curiosa interpretação da Bíblia sustentada por Calvino e seus seguidores. O capitalismo é uma curiosidade teológica.

Até o século XVI a retórica cristã havia defendido, com algum sucesso, os méritos da frugalidade e do desapego ao dinheiro e aos bens materiais. O sucesso deve ser considerado parcial porque desde o quarto século a Igreja como instituição achara-se despudoradamente poderosa e cada vez mais rica, e grande parte do poder subversivo da mensagem do Novo Testamento se perdera na contradição.O capitalismo é uma curiosidade teológica.

Por volta de 1500 a Igreja Católica chafurdava numa complexa rede de favores políticos e económicos, tendo lançado no mercado uma diversificada linha de produtos espirituais a fim de aumentar suas receitas materiais – linha que incluía cartões de perdão pré-pago e lotes de salvação (com vista para Deus!) com o selo de garantia do Santo Padre. Mesmo diante desse cenário, a intransigente doutrina de Jesus sobre as armadilhas do amor ao dinheiro e às riquezas havia sobrevivido na cultura e na ética popular.

Com a Reforma, tudo isso iria mudar.

Lutero começou denunciando a venda de indulgências, ao mesmo tempo em que condenava os monges como universalmente ociosos e o Papa como mãe de todas as sanguessugas. Sua tese do sacerdócio universal demonstrava como bíblica a noção de que o homem pode servir legitimamente a Deus em todas as áreas da vida civil – sendo que ninguém precisa da intermediação de um padre, sacerdote, monge ou freira para estar mais perto de Deus. Como consequência, vociferava Lutero, Deus é eficazmente glorificado na vida familiar e no trabalho honesto do dia-a-dia.

O trabalho foi portanto oficialmente redimido pelo luteranismo – porém, segundo Weber, foi a teologia mais elaborada de Calvino que acabou definitivamente mudando os pratos da balança.

A doutrina Calvinista ganhou notoriedade, também na sua época, devido a sua ênfase sem precedentes nos predestinados, aquela gente que Deus escolheu para herdar a vida eterna. Os predestinados estariam separados, segundo critérios pelos quais somente Deus poderia responder, para a salvação e o paraíso; todos os outros estariam condenados ao inferno e nada podia mudar isso, visto que a salvação não pode ser comprada (mais prejuízo para a venda de indulgências) e Deus é imutável.

Embora fosse tecnicamente impossível estabelecer se determinada pessoa era com certeza um dos predestinados, o consenso era de que a marca divina deixava evidências inequívocas de aprovação na vida da pessoa escolhida. Aqui, neste selo visível de homologação, estava o verdadeiro chamariz da coisa, porque o sucesso nos empreendimentos financeiros foi tomado desde cedo como sendo forte indicação de uma possível inclusão da pessoa entre os predestinados.

A partir de indicações como a do terceiro verso do salmo primeiro, ficou entendido que a marca distintiva do eleito estava em que “tudo quanto fizer prosperará”. Para demonstrar ser um dos perdidos bastava viver de modo indolente, descuidado e perdulário; já um sujeito austero, económico e empreendedor produzia grave evidência de que estava entre os escolhidos.

Calvino adentrou terreno ainda mais inédito ao assinalar que todos, mesmo os ricos, deveriam trabalhar. Ele fez ao mesmo tempo o que pode para desvincular riqueza de dissipação, defendendo que tanto ricos quanto pobres deveriam adoptar um modo de vida austero e temperante. O empreendedor era instado a não gastar um tostão em bens supérfluos ou carnalidades; ao contrário, deveria reinvestir cada centavo dos seus lucros de forma a financiar novos empreendimentos – precisamente como o Tio Patinhas e seu ancestral Ebenezer Scrooge, que sintetizam a ética de trabalho Calvinista. A avareza era tida como coisa especialmente nobre e altruísta.

O que os predestinados tinham ainda em comum com o Tio Patinhas é que recusavam-se por princípio a utilizar seus próprios lucros para ajudar os mais pobres a se alçarem da sua condição ou mitigarem suas agruras. Entendia-se que esse tipo de liberalidade, por mais bem-intencionada que parecesse, violava de modo irresistível a vontade de Deus, já que era somente pelo trabalho de suas próprias mãos que os mais pobres tinham como produzir evidência de que estavam entre os predestinados. A avareza era, portanto, tida como coisa especialmente nobre e altruísta.

Os empregados do empreendedor, eles mesmos calvinistas, deveriam por outro lado encarar seu trabalho como seu “chamado” – chamado que devia ser executado com diligência e alegria mesmo que a recompensa financeira e terrena fosse pequena.

Pronto: aquilo que durante a Idade Média absolutamente não se tolerava era agora encorajado directamente, e com a severa sanção da teologia revista e actualizada. A vida de cada cristão deveria ser a partir de agora uma cruzada pessoal em busca do lucro ilimitado. A riqueza e a prosperidade passaram a ser dever religioso; a generosidade, insidiosa tentação.

Nascia o que Weber chama de “ética protestante do trabalho” – visão de mundo que glorifica a diligência, a pontualidade, a economia, a austeridade e a inelutável supremacia do ambiente de trabalho.

Na Europa essa nova ética do trabalho teve que lutar contra séculos de ranço e resistência católica. Importada com sucesso para o Novo Mundo ela geraria os Estados Unidos, com seus milagres e contradições.

Ele está no meio de nós.
Paulo Brabo (via)

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